quarta-feira, 31 de março de 2010

Coração Polar - Manuel Alegre





Não sei de que cor são os navios

quando naufragam no meio dos teus braços

sei que há um corpo nunca encontrado algures no mar

e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial

a tua promessa nos mastros de todos os veleiros

a ilha perfumada das tuas pernas

o teu ventre de conchas e corais

a gruta onde me esperas

com teus lábios de espuma e de salsugem

os teus naufrágios

e a grande equação do vento e da viagem

onde o acaso floresce com seus espelhos

seus indícios de rosa e descoberta.

Não sei de que cor é essa linha

onde se cruza a lua e a mastreação

mas sei que em cada rua há uma esquina

uma abertura entre a rotina e a maravilha .

há uma hora de fogo para o azul

a hora em que te encontro e não te encontro

há um ângulo ao contrário

uma geometria mágica onde tudo pode ser possível

há um mar imaginário aberto em cada página

não me venham dizer que nunca mais

as rotas nascem do desejo

e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos

quero o teu nome escrito nas marés

nesta cidade onde no sítio mais absurdo

num sentido proibido ou num semáforo

todos os poentes me dizem quem tu és.







Manuel Alegre (n. 1936)

in Poemas de Amor

sábado, 27 de março de 2010

Pergunta-me



Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue


Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos


Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente


Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

                                                                                   Mia Couto

quinta-feira, 25 de março de 2010

A Chegada do Poema



É uma inesperada ideia, que irrompe do nada!
Um sopro,
Um acenar na bruma,
Um balancear de folha,
Um afagar de brisa,
Uma tremura de água,
Um trejeito de ombro,
Um sussurrar de anca,
Um barquinho no olhar...
Não sei explicar!
Batem à porta!
Quem é?!
Vou abrir.
É o poema
Que entra a sorrir...


                                                Eduardo Aleixo

                                                In: " As palavras são de água"

                                                blog: À Beira de Água - http://ealeixo.blogspot.com/

domingo, 21 de março de 2010

Dia da Poesia






Tarde no mar




A tarde é de oiro rútilo: esbraseia.

O horizonte: um cacto purpurino.

E a vaga esbelta que palpita e ondeia,

Com uma frágil graça de menino,



Pousa o manto de arminho na areia

E lá vai, e lá segue o seu destino!

E o sol, nas casas brancas que incendeia,

Desenha mãos sangrentas de assassino!



Que linda tarde aberta sobre o mar!

Vai deitando do céu molhos de rosas

Que Apolo se entretém a desfolhar...



E, sobre mim, em gestos palpitantes,

As tuas mãos morenas, milagrosas,

São as asas do sol, agonizantes...



Florbela Espanca

sexta-feira, 19 de março de 2010

Ter um Pai - Florbela Espanca



"Ter um Pai! É ter na vida

Uma luz por entre escolhos;

É ter dois olhos no mundo

Que vêem pelos nossos olhos!



Ter um Pai! Um coração

Que apenas amor encerra,

É ver Deus, no mundo vil,

É ter os céus cá na terra!



Ter um Pai! Nunca se perde

Aquela santa afeição,

Sempre a mesma, quer o filho

Seja um santo ou um ladrão;



Talvez maior, sendo infame

O filho que é desprezado

Pelo mundo; pois um Pai

Perdoa ao mais desgraçado!



Ter um Pai! Um santo orgulho

Pró coração que lhe quer

Um orgulho que não cabe

Num coração de mulher!



Embora ele seja imenso

Vogando pelo ideal,

O coração que me deste

Ó Pai bondoso é leal!



Ter um Pai! Doce poema

Dum sonho bendito e santo

Nestas letras pequeninas,

Astros dum céu todo encanto!



Ter um Pai! Os órfãozinhos

Não conhecem este amor!

Por mo fazer conhecer,

Bendito seja o Senhor!"



Florbela Espanca




sábado, 13 de março de 2010

O Beijo Mata o Desejo






















MOTE



«Não te beijo e tenho ensejo

Para um beijo te roubar;

O beijo mata o desejo

E eu quero-te desejar.»



GLOSAS

Porque te amo de verdade,

'stou louco por dar-te um beijo,

Mas contra a tua vontade

Não te beijo e tenho ensejo.



Sabendo que deves ter

Milhões deles p'ra me dar,

Teria que enlouquecer

Para um beijo te roubar.



E como em teus lábios puros,

Guardas tudo quanto almejo,

Doutros desejos futuros

O beijo mata o desejo.



Roubando um, mil te daria;

O que não posso é jurar

Que não te aborreceria,

E eu quero-te desejar!



António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..."




quinta-feira, 4 de março de 2010